Os Cinquenta anos de O EXORCISTA – Motelx 2023

Em celebração de um dos maiores clássicos de terror de sempre, o Motelx exibiu em sessão especial, ‘O Exorcista’, de William Friedkin. O festival regressa em 2024, de 10 a 16 de Setembro, no cinema São Jorge, em Lisboa.

O Motelx é um festival de excelência no que concerne à apresentação das novidades do cinema de terror, procurando incansavelmente as melhores obras do género por todos os campos do globo, sem nunca esquecer os grandes mestres. Aniversários de obras clássicas, retrospetivas, convidados de peso como George A. Romero, Tobe Hooper, Hideo Nakata, Roggero Deodato, e mais recentemente, novas figuras populares do género como Ari Aster, e este ano, Brandon Cronenberg, compõem anualmente a programação rica, com tributos em todas as edições.

Este ano não foi diferente – celebra-se em 2023 os cinquenta anos de O Exorcista, a obra prima de William Friedkin (que infelizmente nos deixou à pouco tempo), e como não podia falhar, o festival exibiu o clássico na belíssima e enorme Sala Manoel de Oliveira, iniciando a homenagem ao cineasta ainda antes, durante o Warm-up, onde foi projetado o documentário Leap Of Faith: William Friedkin on the Exorcist, de Alexandre O. Philippe (‘78/52’; ‘Memory: The Origins Of Alien’) que explora a mente cinematográfica do realizador e o seu processo de filmmaking.

Adaptado a partir do próprio romance homónimo, William Peter Blatty serviu também como argumentista, e com W. Friedkin na cadeira de realizador, o duo de visões distintas uniu-se para entregar a história de Chris McNeil, uma atriz famosa que está a trabalhar num filme em Georgetown, Washington D.C., e a sua filha, Regan, de 12 anos, que começa a comportar-se de forma atípica e violenta após ser possuída por um demónio, o que leva a mãe a procurar apoio na igreja depois de todos os tratamentos médicos e psiquiátricos falharem ao ‘curar’ a menina. Com a ajuda do padre Damien Karras (Jason Miller), formado em psiquiatria e em plena crise existencial, este pede autorização da igreja para realizar um exorcismo, que acredita ser a única maneira de salvar Regan.

★★★★★

O Exorcista é uma obra que, devido à sua originalidade e ao legado que se estende já por meio século, se torna difícil de analisar ou até mesmo classificar, e o impacto que teve num género que mudou completamente o cinema colocam-na no seu próprio espectro. Nas últimas cinco décadas surgiram imensos projetos inspirados no trabalho concretizado pelos visionários William Friedkin e William Peter Blatty, mas mesmo depois de todas as sequelas, inspirações, e até mesmo paródias, O Exorcista é, ainda hoje, uma obra diferente de todas as outras. A maneira como foi filmado, as icónicas sequências de violência e profanidade, o ambiente frio e fechado, o tom e atmosfera, os efeitos, todo o conjunto de trabalhos de excelência pelos vários departamentos tornaram esta numa obra intemporal, que mesmo nos dias de hoje não parece nada datada para quem a vê no pequeno ou grande ecrã.

Tudo isso acontece porque é um filme incrivelmente realista (considerando o facto de nos depararmos com uma menina possuída por um demónio que a faz rodar a cabeça 360 graus), realizado quase totalmente com efeitos práticos e mecânicos – a cama a tremer, as convulsões de Regan, a maquilhagem, os olhos brancos, amarelos, sangue e cicatrizes – tudo foi concebido com dispositivos criados para o efeito assim como o trabalho exaustivo realizado pela equipa de maquilhagem.

Apesar de, para todos os efeitos, ser um filme de terror, o mesmo não se carrega como tal. Não há uma urge em bombear-nos com sustos gratuitos, ou banda sonora agressiva. O choque do terror chega-nos primeiro a partir de uma perspetiva psicológica, e só depois é que nos entrega finalmente a explosividade visual, num tom e ritmo ‘frios’ que não se resumem apenas à atmosfera azul e cinzenta de Georgetown, mas num passo meditativo que nos conduz a uma viagem profunda em temas como, a fé; a psicologia; o terror da medicina moderna; a impotência e desespero perante forças fora deste mundo; e a crença do destino.

Cada personagem carrega a sua própria cruz, e o trabalho dos atores é excecional. Foi de facto um ‘leap of faith’ a aposta em Linda Blair, que com a tenra idade de 14 anos conseguiu entregar uma das mais memoráveis prestações de child-actor de sempre com a sua transformação física e exploração de temas maduros; o desespero de Chris (Ellen Burstyn), que carrega o filme às suas costas; a crise de fé do padre Karras até ao encontro com o Diabo; e o confronto-destino do arqueólogo e padre Merryn (Max von Sydow), que abre o filme no solarengo norte do Iraque, e o encerra no quarto gelado de Regan, como se toda a sua carreira o tivesse conduzido àquele preciso momento. Vermos a sua evolução do ponto onde começaram até ao final do terceiro ato é storytelling de topo, e não conseguimos deixar de torcer por todas as personagens.

A fama d’O Exorcista não reside apenas nos méritos do produto final, mas na notoriedade que o mesmo criou. Algumas das primeiras reações ao filme incluíram desmaios, gritos, pessoas a abandonarem as salas de cinema, algumas para respirar um pouco, outras para correrem até à igreja mais próxima na busca de, imagino, salvação, e até mesmo desmaios em sala, nas quais foi preciso chamar ambulâncias.

A realização de Friedkin foi também controversa, utilizando métodos questionáveis para arrancar reações legítimas dos seus atores, como o disparo de armas aleatoriamente no set para os assustar e enervar, os arreios usados para prender Linda Blair e Ellen Burstyn provocaram-lhes algumas lesões, e o quarto de Regan foi reduzido a temperaturas negativas com vários ares condicionados para originar o vapor frio que lhes saíam da boca durante o terceiro ato. William O’Malley chegou mesmo a levar uma bofetada de Friedkin para originar uma reação autêntica numa cena importante que, pelos vistos, não estava a resultar – O’Malley era um padre na vida real, e ao fim de incontáveis takes insatisfatórios, Friedkin optou por uma abordagem mais prática, perguntando-lhe primeiro: ‘Confias em mim?’ O’Malley aparentemente disse que sim…

O detalhe e dedicação foi transversal pela equipa de tal modo que, mesmo em pós-produção, para conceber a voz do Diabo, Mercedes McCambridge bebeu e fumou desalmadamente, abagaçando a voz, e amarrou-se a uma cadeira para que a sua performance fosse mais genuína.

Houve ainda alguns incidentes inacreditáveis durante as filmagens: um certo fim de semana o set ardeu, e a causa não se conseguiu comprovar; algumas pessoas ligadas direta e indiretamente à produção faleceram (com certeza que por coincidência mas dá para imaginar porque se dizia que o filme em si estava possuído), e com tudo o que se passou, o próprio William Friedkin chegou mesmo a pensar que aquela rodagem estava amaldiçoada, e começou a acreditar no Diabo. Os locais de filmagem foram benzidos após concluído o filme.

Quem vê e depois ouve (ou lê) estes episódios, poderá pensar que O Exorcista é um produto de profanação da religião católica, mas tal não é o caso. William Peter Blatty, ele próprio católico, fez questão de escrever o filme não como uma afronta à religião, mas sim como uma história acerca do poder da fé, e a força para enfrentar os nossos demónios mesmo quando a esperança parece perdida e as hipóteses esgotadas. Inclusive, foram contratados padres para servirem de conselheiros durante as filmagens, com alguns deles a entrarem mesmo no filme como personagens, como já mencionado.

Para um filme como este e toda a aura que circula sobre a obra, podemos concluir que, para 1973, o mesmo se encontrava à frente dos tempos em que foi lançado. Na altura, ver uma criança em Linda Blair a proferir tanta profanidade foi algo incrivelmente incomum, as várias cenas icónicas como a masturbação com o crucifixo, a spider walk (incluída mais tarde no Director’s Cut), Regan a levitar na cama, o vomitado verde, a imagem da chegada épica do padre Marrin à casa de Chris, a dupla ‘The Power Of Christ Compels You’, tudo no filme passou o teste do tempo e viverá eternamente numa inteira geração de fãs que puderam experienciar a intensidade d’O Exorcista muito antes de terem idade para ver este tipo de filmes, traumatizando-os e tornando-os para sempre fãs do melhor género de cinema alguma vez criado – o terror!

O Motelx regressa em 2024, da 10 a 16 de Setembro, no Cinema São Jorge, em Lisboa, onde o terror é o prato do dia!